Enviado à Câmara Municipal sob o argumento de “atualizar valores” e “priorizar o acolhimento familiar”, o Projeto de Lei 1461/2025, da Prefeitura de São Paulo, esconde uma mudança radical na política de proteção a crianças e adolescentes. Por trás de um discurso de humanização e eficiência, o que se desenha é uma estratégia de redução de custos que pode colocar em risco crianças e jovens já vulneráveis.
A falsa simplicidade de um “reajuste”
À primeira vista, o PL parece apenas ajustar os valores do auxílio pago às famílias do Serviço Família Acolhedora (SFA), vinculando-os ao Salário Mínimo Paulista. No entanto, a exposição de motivos anexa ao projeto revela um objetivo muito mais amplo e preocupante: substituir em larga escala o acolhimento institucional pelo familiar, não por uma questão técnica ou de maior necessidade da criança, mas porque é mais barato.
O documento oficial é cristalino: enquanto uma vaga em acolhimento institucional (SAICA ou Casa Lar) custa em média R$ 8.750,53 por mês, o acolhimento familiar, mesmo com o reajuste proposto, varia entre R$ 3.608 e R$ 5.412. A conta é simples e direta: transferir os 2.315 acolhidos atuais da rede institucional para famílias acolhedoras geraria uma economia anual de R$ 112,7 milhões aos cofres públicos.
O problema não é a economia, é a lógica que a sustenta
Ninguém é contra a eficiência no uso do dinheiro público. O problema é quando a métrica financeira se torna o eixo central de uma política que deveria ter como norte absoluto a proteção integral da criança e do adolescente
O acolhimento institucional e o familiar são modelos complementares, não substitutos. O SFA é uma ferramenta valiosa para crianças com perfil adequado, mas não pode atender todos os casos. O acolhimento institucional é essencial para:
• Grupos de irmãos numerosos, que raramente podem ser mantidos unidos em uma única família acolhedora.
• Adolescentes com trajetórias complexas, que demandam intervenção especializada e estrutura preparada para conflitos.
• Crianças com necessidades clínicas ou comportamentais intensas, que requerem acompanhamento multiprofissional contínuo.
• Emergências e acolhimentos noturnos e de fim de semana, quando a rede familiar não está disponível.
Ignorar essas diferenças e tratar a migração em massa como algo simples é um reducionismo perigoso.
A ilusão da “transição automática”
O projeto parte do pressuposto otimista de que, com o aumento do auxílio, famílias acolhedoras em número suficiente surgirão naturalmente. A realidade é bem diferente:
• Recrutamento e formação de famílias acolhedoras é um processo lento, que exige campanhas contínuas, avaliação rigorosa e preparação técnica.
• A rede municipal já enfrenta crônica desestruturação: equipes reduzidas, contratos precários, supervisão insuficiente.
• Acolher não é só oferecer um quarto. É lidar com traumas, medos, processos judiciais, visitas familiares e a
complexidade emocional de crianças que foram violentadas ou abandonadas.
Expandir o SFA sem investir paralelamente na estrutura técnica é como aumentar o número de leitos em um hospital sem contratar médicos e enfermeiros.
O risco real: crianças como variável de ajuste
Quando a economia se torna a motivação principal, a criança deixa de ser sujeito de direitos para virar variável de ajuste fiscal. Os riscos são concretos:
1. Pressão por desinstitucionalização precoce: Crianças podem ser transferidas para famílias sem o devido preparo, apenas para cumprir metas de redução de custos.
2. Sobrecarga das famílias acolhedoras: Sem suporte técnico adequado, famílias podem não dar conta de demandas complexas, levando a devoluções ou novos traumas.
3. Esvaziamento da rede institucional: O fechamento de vagas institucionais sem a devida expansão qualificada do SFA pode deixar a cidade despreparada para emergências e casos de alta complexidade.
4. Invisibilização de necessidades específicas: Adolescentes, grupos de irmãos e crianças com deficiência podem ser os mais prejudicados, forçados a se adaptar a um modelo que não atende suas necessidades.
Perguntas que o PL não responde
• Se a economia é tão expressiva, por que não reinvestir parte desses recursos no fortalecimento da rede técnica, na formação de famílias e na melhoria da estrutura de supervisão?
• Como garantir que a migração para o acolhimento familiar será feita com avaliação técnica individualizada, e não por pressão por resultados financeiros?
• O que acontecerá com as crianças que, após tentativa no SFA, precisarem retornar ao acolhimento institucional, se este tiver sido desmontado?
Proteger não é gastar, é investir
Cuidar de crianças vulneráveis não é “caro” — é uma obrigação do Estado. Caro, sim, é o custo social da negligência: adultos traumatizados, vulnerabilidade perpetuada, violência repetida em novas gerações.
O PL 1461/2025 peca não por querer fortalecer o acolhimento familiar, mas por colocar a economia acima da proteção. Toda política pública deve ser eficiente, mas quando se trata de crianças afastadas de suas famílias por decisão judicial, a pergunta central não pode ser “quanto custa?”, e sim “o que elas precisam?”.
São Paulo merece uma política de acolhimento que una eficiência financeira à excelência técnica e ao compromisso ético. Até lá, projetos como este seguirão sendo enxergados pelo que são: tentativas de economizar na proteção de quem mais precisa do Estado.
